sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O charme discreto das alcatifas da Festa Patiño

Primavera de Praga
Setembro de 1968, enquanto o mundo estava siderado nos acontecimentos da Primavera de Praga encabeçada pelo reformista Aleksander Dubchek, na escalada da Guerra do Vietname no Sudoeste Asiático, ou no assassinato de Robert Kennedy, o Portugal de Salazar lutava contra os ventos da história, na esperança de ganhar tempo e aliados na sua politica africana, tentando reverter o status-quo a seu favor. Contudo, não foi por essas razões que no final do verão de 1968 o país mais velho da europa se tornou manchete à escala global, mas sim, pela festa que o milionário boliviano Antenor Patiño planeara dar na sua quinta em Alcoitão. Esse evento social que colocou Portugal no roteiro do jet-set internacional era comentado de boca em boca, nas mesas dos cafés e até nos círculos políticos. E não era para menos! Afinal de contas, o milionário ousou chamar-lhe a "Festa do Século" e passou anos a prepara-la.


Antenor Patiño
Mas quem era Antenor Patiño?
Filho de Simón I Patiño, nascido em 1860 tornar-se-ia em finais do século XIX, inícios de XX, no “Rei do Estanho”. Aparentemente existem duas versões de como Simón conseguiu aquilo que todos (ou quase todos) desejam neste mundo: ser rico e famoso. Simón era um modesto empregado de uma loja na cidade de Cochabamba, certo dia entrou-lhe pela loja dentro um cliente sem dinheiro querendo saldar uma pequena divida com um título de propriedade de uma mina sem valor. O empregado acedeu a esse pedido, mas o seu patrão ficou furioso, despedindo-o na hora.  Em vez de lhe pagar a indeminização a que tinha direito, deu-lhe a mina. Numa outra versão Simón era o dono dessa loja e usou as suas economias para comprar um titulo de propriedade de uma mina. O certo é que nessa mina Simón Patiño descobriu estanho,  minério que na época estava a ganhar valor de mercado devido a ser uma matéria-prima cada vez mais procurada pelos diversos usos que tinha na industria. Nos anos seguintes criou o Banco Mercantil (cujo capital era maior que o Orçamento de Estado boliviano) e foi comprando as minas de estanho da Bolívia tornando-se assim no “Rei do Estanho”. Antenor Patiño nasceu em 1896 era o filho mais velho de Simón e acabou por herdar uma fortuna calculada em 200 milhões de dólares, o seu casamento em 1931 com Maria Cristina de Borbón, não foi pacifico e fez correr muita tinta nos jornais e imprensa cor de rosa. Pertencente à família real espanhola, Maria Cristina pôs um processo em tribunal contra Antenor por abandono do lar logo nos anos 40. O processo de divorcio arrastar-se-á pelos tribunais de Paris, Madrid, La Paz e Nova Iorque por mais de 20 anos, até que  no México as aspirações de Patiño foram ouvidas e o divorcio foi consumado, ignorando todos os processos pendentes nos outros tribunais. Entretanto, em 1952, a revolução ocorrida na Bolívia nacionalizou todos os bens da família e Patiño foi obrigado a sair do país. Decidiu visitar Portugal, apaixonando-se pela Costa do Sol, que à época era ainda porto de abrigo de nobres e aristocratas fugidos aos horrores da Segunda Guerra Mundial. Em Alcoitão encontrou o lugar ideal para construir o seu palácio inspirado na arquitectura portuguesa do século XVIII, num terreno que foi crescendo até à dimensão final de 50 hectares. Era ali que Antenor Patiño passava pelo menos dois meses por ano, saboreando o suave verão da Costa do Sol. E era também ali que planeava dar a Festa do Século, por forma a apresentar Beatriz de Rivera como sua esposa a todo o high-life internacional.

Vista aerea da Quinta do Patiño

Para se ter uma noção do que era por essa época a Quinta de Alcoitão, sem maçar muito o leitor aqui fica uma breve descrição:  possuía uma sala de bowling, uma sala de cinema, uma sala para sauna e massagens, uma discoteca, uma imitação da biblioteca joanina da universidade de coimbra, uma pequena casa para as crianças brincarem, um vale com oliveiras, um court de tenis, uma estufa com flores, outra com plantas, uma capela do XVI que fora trazida de uma aldeia do norte de Portugal e construída de novo  na propriedade, uma coudelaria com pistas de aquecimento de saltos e de corridas, uma enorme vinha, dois lagos, uma piscina, um jardim suspenso com 37 canteiros, um campo de golfe, pomares, uma mata extensas plantações de arvores de fruto, e ainda cães, vacas, peixes de aquário, faisões e aves de capoeira, além de uma gigantesco batalhão de 150 empregados!

Porém nesse verão de 1968 Portugal transformou-se, como que por toque de magia, num país de festas e bailes dançantes, às quais ninguém queria faltar, quer fossem figuras do jet-set nacional ou internacional. A 3 de Setembro D. Maria Amélia de Mello (neta de Alfredo da Silva e uma das duas irmãs dos empresários Jorge e José de Mello) ofereceu na sua residência um almoço intimo a algumas das individualidades estrangeiras que se encontravam em Portugal para assistirem às festas das famílias Schumberger e Patiño. Dos 80 convidados saliente-se a presença de Cristina Ford (mulher de Henry Ford II), o estilista Givenchy, Maria Biatriz de Saboia e a esposa do sr. Niarchos (o grande rival de Onassis no mundo da navegação). À noite os Duques do Cadaval resolveram dar uma festa intima para 130 convidados tendo escolhido a Estalagem do Muchaxo para o efeito. Estiveram presentes figuras como a actriz Capucine, Henry Ford II, os Condes de Manique, o próprio Antenor Patiño e muitos outros que iriam abrilhantar as festas seguintes. 

Estalagem do Muchaxo

Audrey Hepburn e Doris Brynner
No dia seguinte chegou Aeroporto de Lisboa, a elegantíssima Audrey Hepburn, trazendo por companheira de viagem Doris Brynner (mulher do actor Yul Brynner). Nessa época, o casamento de Audrey com o actor Mel Ferrer estava a chegar ao fim, vivendo vidas separadas. Assim enquanto o marido se encontrava em Londres em filmagens, Audrey achou uma optima ideia vir conhecer Portugal e divertir-se um pouco, pondo de lado os seus problemas conjugais. Nas horas seguintes chegaram a Portugal, Begun Aga Khan, Gina Lollobrigida, o pintor Vidal y Quadras, a condessa de Douciev, Sr. e Sra. Newhouse (proprietários da Revista Vogue) entre um rol quase interminável de outras figuras do jet-set internacional, que esgotaram a capacidade hoteleira de luxo em Lisboa e no Estoril. 

Quinta do Vinagre


Pierre e São Schlumberger
À noite todas elas se encontrariam na Quinta do Vinagre, situada em Colares, palco da festa Schlumberger (Pierre e Maria Conceição que era de origem portuguesa). No seu solar do Séc. XVI que outrora foram propriedade dos Condes de Mafra mandaram construir de propósito um pavilhão que estava avaliado em milhares de contos. As colunas que o sustentavam eram de mármore e os espelhos tinham vindo de França, quanto às fardas do empregados seriam azuis com botões em prata! O Hotel Ritz forneceu a comida. As flores que decoravam faustosamente todo o pavilhão vieram de Paris, isto porque Antenor Patiño comprou praticamente todas as flores existente no mercado nacional para decorar a sua festa. Ao longo de toda a noite os 1400 convidados foram animados por duas Orquestras até à debandada dos últimos convidados, coisa que aconteceu por volta das 7 horas da manhã do dia seguinte.

O Pavilhão da Festa do Vinagre à noite

Manoel Vinhas na sua Herdade
No dia seguinte foi a vez do empresário Manoel Vinhas (abastado industrial ligado ao sector cervejeiro) dar também ele uma festa. Localizada em 200 quilómetros de Lisboa, a Herdade do Zambujal em Águas de Moura, foi placo da única "festa à portuguesa". Os convidados eram recebidos por uma guarda de honra feita por campinos que seguravam os cavalos à mão, sendo os convidados direccionados para o «tentadero». Ali os convidados poderam apreciar Luis Dominguin (já afastado do mundo tauromáquico) a dar um ar da sua graça a liderar bezerros. O transporte dos 600 convidados que se encontravam no «tentadero» foi efctuado por meio de camionetas. Chegados ao arraial os foliões foram recebidos por duas charangas, no rio que ficava sobranceiro à Herdade uma barca com um grupo de alentejanos vestidos a rigor cantava modas. Flores da Madeira decoravam o espaço dando-lhe uma frescura única, na zona de jantares, um tecto feito em colmo protegia os convidados da possível humidade nocturna. Na ementa constavam sardinhas, croquetes e caldo verde, servidos em louça de barro e acompanhadas por canecas com água pé. As mesas estavam enfeitadas com toalhas aos quadrados. No arraial havia de tudo, barraquinhas de tiro, um macaco farturas, e um sem número de outras coisas que fizeram as delícias dos convidados. Claudine de Cadaval, Audrey Hepburn, Givenchy, Ratna Dewi (ex mulher de Sukarno, Presidente da Indonésia), Douglas Fairbanks Jr., Ira Furstenberg, ficaram encantados e no final qualificaram-na de «Extraordinária», «Sensacional», «Única», «A Festa das Festas». Porém a maior e mais aguardada de todas as festas teria finalmente lugar no dia seguinte.

Audrey no «tentadero» da Herdade do Zambujal

Ao princípio da tarde do dia 6 de Setembro a actriz Zsa Zsa Gabor aterrou no Aeroporto de Lisboa seguindo directamente para o Hotel Ritz. A essa hora Antenor Patiño fiscalizava tudo ao pormenor para que nada falhasse na festa. O milionário não se poupou a gastos, tudo foi pensado ao mínimo detalhe. Patiño foi consultar especialistas da meteorologia para se assegurar que nesse dia não chovia. Contudo, por precaução. resolveu contratar por 70 mil dólares uma equipa de técnicos americanos que montaram um pequeno observatório na Serra de Sintra, ao mesmo tempo que mantinha um avião de prevenção pronto a descolar para lançar um produto nas nuvens caso houvesse ameaça de chuva.  O faqueiro de «christofle» foi adquirido em Paris pela soma de 2500 contos, foram também adquiridos pratos em prata estilo Séc. XVIII no valor de algumas centenas de contos, bem como oito grandes frigoríficos, quatro congeladores de grande capacidade e seis fogões industriais. Foram contratados dois especialistas franceses para tratarem das iluminações dos jardins. Num dos lagos foi montado um dispositivo que regulava a intensidade das luzes e os repuxos de água consoante o som da música. Foi ainda construída uma gruta artificial com o propósito de servir de discoteca, tendo por dimensões, 25 metros de largura, 10 metros de altura e deslumbrantes efeitos de luz e som, sendo servida por dois bares. Patiño não queria que nenhum sapato dos convidados se estragasse e para isso mandou cobrir os terraços e os jardins da Quinta de Alcoitão de alcatifa vermelha, trabalho esse encomendado à CUF claro está...uma estravagância que lhe custou nada mais nada menos do que 500 contos! Aliás num rasgo de genialidade e explorando o mediatismo do acontecimento social, a CUF mandou publicar em diversos jornais do dia 7 de Setembro um anuncio onde era referida a colocação por pessoal técnico da empresa dos cerca de 3 mil metros de alcatifas no tempo record de apenas trêsdias.
Anuncio da alcatifas da CUF 
Um conjunto de lanternas de ferro forjado custaram 700 contos, e os dois mil quilos de flores que incluíam 300 dúzias de gladíolos, 200 dúzias de cravos e rosas e 200 dúzias de dálias chegaram aos 300 contos. O anfitrião explicou aos técnicos da Romeira (empresa florista nacional especialista em eventos deste tipo) que não queria ramagens prateadas ou douradas e só queria usar flores portuguesas. Na cozinha o chef Luís Carolino preparava uma ementa composta por Salmão 
farci e trutas salmonadas do Rio Minho, filetes de linguado e espargos glacésboulantine de galinha au homard, frango e jambom glacés, presunto de Chaves e outras especialidades portuguesas, corbeilles de frutas de Portugal e vinte qualidades de doces -charlottes, tortas várias, pastelaria francesa, petits-fours, parfaits, sorvetes diversos e D. Rodrigos do Algarve. Encomendou cerca de 1800 garrafas de champagne Perrier-Jouet bem como 600 garrafas de whisky das marcas White Horse, Ballantines e Highland Queen.




Populares aguardando as celebridades da Festa Patiño
Ao inicio da noite à beira da estrada que ligava Alcoitão a Sintra, começaram a juntar-se muito curiosos que foram cercando os portões da Quinta para ver a chegada do high life nacional e internacional. Entretanto Antenor Patiño vestiu o seu smoking branco e juntamente com a esposa Beatriz dirigiram-se para a entrada da Quinta para ali esperar os seus convidados. Ia ser uma noite longa estavam confirmados cerca de 1800 convidados, dos quais encontravam-se todos os que foram referidos nas festas anteriores bem como Raimundo Orsini (o mais belo playboy do mundo), Zsa Zsa Gabor, o actor Curd Jugens, Stavros Niarchos, Gunter Sachs (marido de Brigitte Bardot), a actriz Maria Félix, membros das familias Rockfeller e Rothschilds, Pierre Cardin, Valentino, o industrial italiano Paollo Marinotti. Do lado português estiveram figuras da sociedade como Vera Lagoa, João Coito, Mary Espírito Santo, Amália Rodrigues, Francisco Pinto Balsemão, o banqueiro Jorge Espirito Santo Silva, os Viscondes de Soveral, membros das famílias Sousa Lara e Champalimaud, o empresário Jorge de Mello acompanhado da esposa Maria Eugénia entre muitas outras figuras nacionais. A cobertura jornalística internacional do evento foi garantida pelas equipas de reportagem da TimesParis Match e pela Oggi. Às duas da manhã as orquestras que até aí abrilhantavam a festa calaram-se e alguém disse em voz alta "Vai começar o fogo de artificio!". O fogo de artificio foi deveras espectacular, espantando e deslumbrando todos quantos na festa assistiram a ele, contudo a intensidade foi tal que provocou um incêndio nos pinhais da propriedade, ao qual os bombeiros souberam dar uma rápida resposta. Às 4 da manhã os convidados
Jorge de Mello e sua esposa
passaram da pista de dança para um dos lagos da propriedade, local onde puderam apreciar as «marchinhas» da orquestra do brasileiro Sílvio Silveira. Havia ainda a discoteca para onde se dirigiram todos os «românticos», termo utilizado pela imprensa, devido à envolvência do local, construído para imitar uma gruta. A festa terminou já o Sol ia alto, os empregados começaram a servir o pequeno almoço junto da piscina de agua aquecida. Alguns dos convidados terminaram a festa com um valente mergulho, e até para isso Antenor Patino estava preparado, tendo encomendado na América fatos de banho de papel. Pelas 8 horas os convidados regressavam às casas onde se encontravam hospedados ou para os seus quartos de hotel. Terminavam assim os dias frenéticos em que Portugal foi palco mundial de algumas das maiores festas de sempre, mas não terminava apenas isso. Na manhã do dia 7 de Setembro, o país acordou com a noticia de que na noite anterior, o Presidente do Conselho tinha sido operado de urgência no Hospital da Cruz Vermelha, devido a um traumatismo craniano do qual nunca recuperou. Era o princípio do fim do salazarismo. 


Um aspecto da Festa Patiño ao amanhecer


E agora diga-me o leitor, valeu ou não valeu apena ler este post até ao fim? É certamente muito diferente de todos aqueles que tenho escrito, mas é impossível ficar indiferente a tais eventos. Ainda hoje a uma distância de 50 anos fascinam e abrem-nos a boca de espanto não só pela sua espetacularidade como pelo seu glamour e ate originalidade. E a tudo isto podemos ainda juntar a presença discreta das alcatifas da CUF... e do seu líder.

3 comentários:

Catarina disse...

Ricardo o texto está espectacular e até me senti na festa a dançar e a comer.
Gostei muito dá para perceber que Portugal não está agora (no século XXI) na moda, mas sempre esteve.
Grande pesquisa de conteúdo e de imagens. Parabéns.

Unknown disse...

Belíssimo texto. Parabéns.

RMendes disse...

Muito bom texto. Parabéns